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30 DE JUNHO DE 2025
Orgulho, dignidade e cidadania: o papel dos Cartórios na garantia de direitos da população LGBT+
Sete anos depois do Provimento nº 73, os Cartórios seguem sendo espaços onde a identidade encontra
Este ano, o Dia Internacional do Orgulho LGBT+ ganha ainda mais relevância ao marcar os sete anos da edição do Provimento nº 73/2018 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Este marco regulatório transformou um caminho de luta em um direito acessível, permitindo a retificação de prenome e gênero diretamente nos Cartórios de Registro Civil, sem a necessidade de longos processos judiciais ou laudos médicos patologizantes.
Enquanto o Poder Judiciário firma os princípios da igualdade, é na capilaridade dos quase 8 mil Cartórios de Registro Civil em todo o Brasil que esses direitos ganham forma concreta. Um exemplo disso é o número expressivo de mudanças de nome e gênero realizadas em Cartórios desde junho de 2018: mais de 16 mil atos e só em 2023 foram 4 mil procedimentos de retificação de nome e gênero realizados em todo o país. Mais que números, esses dados simbolizam vidas reescritas com respeito, a eficácia da política pública e a confiança crescente da população LGBT+ nos serviços extrajudiciais como agentes fundamentais de cidadania.
Da luta nos tribunais à conquista no balcão: a gênese de um direito fundamental
A desburocratização da retificação de nome e gênero não surgiu de forma espontânea. Ela é o resultado de uma longa evolução jurisprudencial que transferiu o poder de decisão da esfera médica e judicial para a autonomia do indivíduo, encontrando nos Cartórios o seu ponto de materialização.
Antes de 2018, o caminho para uma pessoa transgênero alinhar seus documentos à sua identidade de gênero era uma verdadeira via crúcis. O processo era invariavelmente judicial, caracterizado por sua lentidão, altos custos e, acima de tudo, por uma abordagem invasiva e degradante. Era comum a exigência de laudos médicos, avaliações psicológicas e até a comprovação de cirurgias de redesignação sexual.
A advogada Maria Eduarda Aguiar recorda que não havia padronização nas decisões judiciais, o que gerava um cenário de profunda insegurança jurídica. Alguns juízes autorizavam a retificação completa, outros apenas a do nome, e havia ainda aqueles que exigiam perícias psiquiátricas para “comprovar” a identidade trans. Esse sistema, além de humilhante, era excludente e inacessível para a maioria.
A virada jurisprudencial: o STF e o reconhecimento da autodeclaração
O ponto de virada começou a ser desenhado no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e consolidou-se no Supremo Tribunal Federal (STF). Em decisões históricas, como a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4.275 e o Recurso Extraordinário (RE) 670.422, a mais alta corte do país estabeleceu uma tese revolucionária: o direito à identidade de gênero é um direito fundamental e subjetivo, baseado na autodeclaração do indivíduo.
Influenciado por tratados internacionais de direitos humanos, como o Pacto de San José da Costa Rica, e pela Opinião Consultiva 24/17 da Corte Interamericana de Direitos Humanos, o STF determinou que a alteração de prenome e gênero independe de cirurgia de redesignação ou de terapias hormonais, que não se exige nada além da manifestação de vontade do indivíduo e que o procedimento pode ser realizado tanto pela via judicial quanto diretamente pela via administrativa.
Essa mudança foi paradigmática, pois transferiu o locus de autoridade de um terceiro (médico ou juiz) para a própria pessoa, reconhecendo sua autonomia e dignidade.
O Provimento nº 73/2018: A tradução da justiça em procedimento
Com os princípios firmados pelo STF, coube ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), sob a liderança do então corregedor Nacional de Justiça, ministro João Otávio de Noronha, a tarefa de criar a ponte entre a decisão da corte e a prática cotidiana. Em 28 de junho de 2018, foi editado o Provimento nº 73, que regulamentou o procedimento extrajudicial nos Cartórios de Registro Civil.
A norma estabeleceu regras claras e objetivas: toda pessoa maior de 18 anos pode requerer a alteração diretamente no Cartório, apresentando uma lista definida de documentos e, crucialmente, sem a necessidade de autorização judicial ou laudos de qualquer natureza. O provimento também garantiu o sigilo do procedimento, determinando que a origem da alteração não deve constar nas certidões emitidas, protegendo a privacidade do cidadão.
“A decisão do STF, em 2018, foi extremamente humana porque deu às pessoas o poder de se autodeterminar. Não é mais um juiz que diz quem a pessoa é. É uma vitória”, avalia a defensora pública Emmanuela Saboya, especialista em retificação de nome e gênero no Distrito Federal. De fato, antes desse marco legal, o caminho para reconhecimento era longo e penoso: demandava ingressar com duas ações judiciais distintas (uma na Vara de Família e outra na Vara de Registros Públicos), além de apresentar laudos médicos e psiquiátricos que “comprovassem” a transexualidade. Muitas pessoas trans e travestis enfrentavam anos de batalha judicial para obter uma sentença que autorizasse a mudança, isso quando tinham acesso a advogado ou Defensoria.
O Provimento nº 73/2018 mudou radicalmente esse cenário, estabelecendo um procedimento administrativo simples, padronizado e válido em todos os Cartórios do Brasil. Entrou em vigor imediatamente após sua publicação, em junho de 2018, e desde então vem sendo aplicado sob supervisão das corregedorias de justiça. Para menores de 18 anos, a via judicial ainda é necessária (com representação dos pais ou responsáveis), mas para os adultos trans o direito à retificação extrajudicial tornou-se realidade acessível.
“A melhor coisa que aconteceu comigo”: o impacto social e pessoal da retificação
A importância do Provimento nº 73/2018 transcende a análise jurídica. Seu maior impacto é medido nas vidas transformadas, na dignidade resgatada e na cidadania finalmente exercida sem constrangimentos.
Sandra dos Santos, a primeira mulher trans a retificar seu nome em Roraima, resume o sentimento de muitos ao afirmar que ter seus documentos alinhados à sua identidade de gênero “foi a melhor coisa que aconteceu” com ela. Sandra recorda os constrangimentos diários que enfrentava em serviços básicos, como postos de saúde ou entrevistas de emprego, onde era forçada a expor sua intimidade para justificar um nome masculino no RG. Hoje, ela celebra a possibilidade de ter “uma vida normal”.
Por cinco anos, a carioca Biancka Fernandes buscou adequar seus documentos à sua identidade feminina. Sem orientação e com poucos recursos, ela peregrinou por 11 Cartórios diferentes tentando mudar nome e gênero. Somente em 2018, com a nova norma em vigor, Biancka conseguiu a retificação durante um mutirão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Ao receber a certidão de nascimento compatível com quem ela é, descreveu a sensação de renascer. “Eu passei por muitas dificuldades, por isso é de extrema importância essa mudança, nasci de novo. Tenho a esperança de não passar mais por certas turbulências”, conta Biancka. Hoje, ela exibe com orgulho seu documento com nome feminino, marco de sua cidadania reconhecida e proteção contra a discriminação. Histórias como a de Biancka se repetem em todo o país, sinalizando uma transformação social tangível proporcionada pelos Cartórios.
Outra história emblemática é a de Danilo Alves, homem trans de Brasília identificado como do gênero feminino ao nascer. Ao atingir a maioridade, Danilo buscou retificar seus documentos para o gênero masculino, contando com orientação da Defensoria Pública. Graças ao procedimento extrajudicial simplificado, ele reuniu a documentação exigida e deu entrada no Cartório. “Me passaram a lista de documentos, entreguei tudo no Cartório onde fui registrado e, com oito dias, já estava pronta a nova certidão”, relata Danilo. Com a certidão retificada em mãos, ele conseguiu emitir novos documentos, como o RG, CPF e título de eleitor condizentes com sua identidade de gênero, abrindo caminho para exercer plenamente seus direitos, estudar e trabalhar sem constrangimentos.
As vivências de Biancka e Danilo ilustram o efeito concreto da mudança legal de 2018: para pessoas trans e travestis, o reconhecimento oficial da identidade representa dignidade e alívio. Documentos adequados eliminam a exposição ao preconceito em situações cotidianas, da matrícula escolar ao atendimento de saúde, e fortalecem a autoestima. “Ainda me olham diferente no ônibus para o trabalho, mas estou feliz e orgulhosa”, diz Biancka, que teve até o apoio da mãe no processo.
O impacto pessoal é refletido de forma contundente nas estatísticas. Desde que o procedimento foi autorizado em junho de 2018, um total de 17.346 mudanças de nome e gênero foram realizadas em Cartórios de todo o Brasil. Os dados, compilados pela Central de Informações do Registro Civil (CRC Nacional) e atualizados até 30 de novembro de 2024, revelam a consolidação e a ampla adesão a este direito.
A prática do acolhimento: a atuação dos Cartórios de Registro Civil
A eficácia do Provimento nº 73/2018 depende fundamentalmente da atuação dos registradores civis na ponta. A liderança das entidades de classe e a experiência dos profissionais no dia a dia mostram um amadurecimento institucional, que migra da mera obediência à norma para uma missão ativa de acolhimento.
Em sintonia com esse contexto de ampliação de direitos, a Associação dos Notários e Registradores do Brasil (ANOREG/BR) lançou a iniciativa Cartório Plural, voltada a promover a inclusão e o respeito à diversidade no ambiente dos Cartórios. O programa foi apresentado nacionalmente em 2022 e reforça o compromisso do serviço extrajudicial com a igualdade de tratamento. O objetivo central do Cartório Plural é promover práticas inclusivas nos Cartórios de todo o país e, ao mesmo tempo, esclarecer a população sobre os atos disponíveis nos Cartórios para garantia de direitos individuais, promoção da diversidade e busca da igualdade.
Toni Reis, diretor-presidente da Aliança Nacional LGBTI, elogia o programa como uma “excelente iniciativa para a promoção do respeito e empatia”, destacando a importância de um atendimento que não expresse “vieses inconscientes” ou “preconceitos”. A advogada Lucila Lang, da Casa 1, complementa, afirmando que a iniciativa é “bastante importante no sentido de pensar formações e letramentos sobre a questão LGBTQIAPN+”, especialmente diante do aumento de procedimentos extrajudiciais para essa população. O Cartório Plural, portanto, não é apenas uma campanha, mas um passo estruturante para garantir que o direito à dignidade, formalizado em leis e provimentos, se traduza em um tratamento verdadeiramente respeitoso no balcão.
No balcão do Cartório: a experiência de quem faz acontecer
Talvez nenhum relato ilustre melhor a transformação do sistema do que o de Carla Watanabe. Como a primeira e única tabeliã trans do Brasil, ela possui uma perspectiva dupla e poderosa. Em depoimento à CPI da Violência Contra Pessoas Trans e Travestis na Câmara Municipal de São Paulo, ela narrou as dificuldades que enfrentou em seu próprio processo de retificação, incluindo a recusa de Cartórios, a burocracia e o preconceito de funcionários.
O papel dos Cartórios na garantia de direitos da população LGBTQIA+ se estende a outra esfera fundamental da vida civil: o casamento. A formalização da união estável e do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo é um serviço essencial que confere segurança jurídica e reconhecimento às famílias. As estatísticas do IBGE mostram que, também nesse campo, os Cartórios são protagonistas.
Em 2023, o Brasil atingiu um recorde de 13.678 casamentos homoafetivos, mais que o triplo do número registrado em 2013, ano em que o CNJ, por meio da Resolução nº 175, determinou que os Cartórios não poderiam se recusar a celebrar casamentos civis ou converter uniões estáveis em casamento entre pessoas do mesmo sexo. O crescimento contínuo, especialmente entre mulheres, que também bateram recorde em 2023, demonstra a crescente aceitação social e a importância dos Cartórios como o portal para a formalização desses laços e de todos os direitos deles decorrentes.
Avanços contínuos e próximos desafios
Sete anos após o Provimento nº 73, o Brasil continua avançando para aperfeiçoar a garantia dos direitos de pessoas LGBT+. Recentemente, o CNJ expandiu o alcance da retificação extrajudicial para brasileiros transgênero que vivem no exterior. Em 2023, foi editado o Provimento nº 152/2023, permitindo que consulados e embaixadas do Brasil recebam os pedidos de alteração de nome e gênero, sem necessidade de processo judicial no país de origem. “Agora tornou-se possível iniciar o processo de averbação de nome e gênero para pessoas transgênero residentes no exterior por meio da rede consular brasileira”, explicou o Ministério das Relações Exteriores.
Essa atualização normativa, complementar ao Provimento 73, remove barreiras geográficas e beneficia cidadãos trans que haviam ficado alijados do direito por estarem fora do território nacional. Sob a mesma lógica de dignidade, o CNJ reafirmou que não se exigem laudos ou exames nesses casos, basta a declaração de vontade do interessado, cabendo ao agente consular adotar os mesmos cuidados de verificação já praticados pelos registradores civis.
Apesar do inegável sucesso da retificação extrajudicial, é crucial contextualizar esse avanço dentro do cenário mais amplo e adverso dos direitos LGBT+ no Brasil e reconhecer os desafios que ainda persistem. A psicóloga Pietra Fraga do Prado, do Observatório de Mortes e Violências contra LGBTI+, oferece um panorama sóbrio. O Brasil continua sendo, há 14 anos, o país que mais mata pessoas LGBTQIA+ no mundo, com dados que ainda são subnotificados. As mulheres trans e travestis são as vítimas mais frequentes dessa violência brutal.
Os Cartórios como pilares da cidadania inclusiva
No balanço desses sete anos, o que se celebra é mais que um provimento normativo, é uma mudança de paradigma. Os Cartórios de Registro Civil tornaram-se grandes aliados na promoção dos direitos LGBT+, ao operacionalizar conquistas legais de forma capilar e humanizada. Cada prenome adequadamente registrado, cada casamento homoafetivo lavrado, representa um cidadão cuja existência é legitimada pelos livros oficiais.
O direito ao nome e à identidade de gênero é, em essência, o direito a ser tratado com respeito. A experiência brasileira pós-2018 mostra que quando as instituições removem obstáculos desnecessários e atuam com empatia, a resposta da sociedade é positiva. Biancka, agora com sua carteira de identidade feminina, planeja retomar os estudos e sente que “a vida voltou a andar no rumo certo”. Danilo, com seu nome masculino reconhecido, relata que as relações de trabalho melhoraram e que ele se sente mais confiante para “seguir em frente”.
No âmbito institucional, os Cartórios brasileiros reafirmam diariamente sua vocação de servir ao público com excelência técnica e sensibilidade humana. Sob a égide do Provimento nº 73/2018, milhares de registros foram adequados, levando esperança à população trans e travesti. A cada assinatura em livro, um profissional do Cartório chancela não apenas uma alteração registral, mas um ato de cidadania.
Fonte: ANOREG/BR
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